À medida que os dias passavam, mais
se acentuava uma sensação de desconforto perante o evoluir da situação. Nós
sabíamos muito pouco sobre as conversações, para além daquilo que era do
conhecimento público. As notícias do que se passava no terreno não era de molde
a tranquilizar-nos, tanto da parte das populações, brancas e negras, como das
tropas. Todos pressentiam um fim de época, uma mudança profunda de vida, mas
ninguém se atrevia ainda a assumir as rupturas necessárias.
Os mais activos, ainda assim, eram os
representantes de minorias brancas inimigas do processo iniciado com o 25 de
Abril, conducente à independência de Moçambique fora do seu controle. Os
trabalhadores concentrados nas zonas urbanas imitavam os seus congéneres de
Portugal, fazendo greves e lutando pela melhoria das suas condições de trabalho;
nas zonas rurais levantavam-se revoltas locais, sem qualquer plano de conjunto.
Por sua vez, os militares ansiavam por uma palavra que confirmasse o que todos
começavam a considerar inevitável – o acordo com a Frelimo para a transferência
de poder.
No meio destas tensas expectativas,
nós, membros do MFA local, não podíamos permanecer acomodados às diminutas
notícias das negociações e ao lento desenvolvimento do processo. O mês de Julho
foi um período de grande actividade, que nos conduziu a uma firme intervenção
no rumo dos acontecimentos. Nós não podíamos deixar correr o tempo, pois
sabíamos que corria contra nós. A situação no terreno impunha-nos uma série de
tomadas de posição, até que Lisboa aceitasse a lógica que decorria do 25 de
Abril e do Programa do MFA – o reconhecimento do direito dos povos à
independência e, no caso de Moçambique, a aceitação da Frelimo como
interlocutor privilegiado.
Era esse o sentido da convocatória
para uma grande reunião de oficiais em Nampula, no dia 2 de Julho, ao fim da
tarde. Eis os seus termos:
«Convocatória
1. Considerando:
a. Que
o Gabinete do MFA junto do Comando-Chefe, além das suas funções, vem exercendo
por acumulação as funções da Comissão Regional (de Nampula) e que esta prática
se tem mostrado inconveniente;
b. Que
na reunião efectuada em Nampula com todas as Comissões Regionais foi
considerado, face à situação real em Moçambique, que era da maior urgência e
necessidade sair do impasse político a que o Governo chegou nas conversações
com o PAIGC e com a FRELIMO;
c. Que
na mesma reunião houve unanimidade em considerar que tal impasse só seria
ultrapassado se o Governo português reconhecesse o direito dos povos à
independência;
d. Que
há necessidade de informar concreta e esclarecidamente todos os escalões
militares e do Governo do pensamento da maioria dos elementos afectos às suas
decisões, para que estas sejam tomadas na posse de todos os dados e
consequentemente perfeitamente adaptadas às realidades;
e. Que
em reunião efectuada em Nampula em 1 de Julho com oficiais do MFA foi aprovado
por unanimidade que se deveria pôr à consideração e votação de todos os
oficiais da guarnição de Nampula, reunidos em plenário, a seguinte moção:
“Que se deverão reiniciar as
conversações com a FRELIMO aceitando os seguintes princípios:
- Reconhecimento prévio do direito à
independência do povo de Moçambique
- Reconhecimento da FRELIMO, no
actual contexto político, como representante mais válido do povo de
Moçambique”.
2.
Convocam-se todos os oficiais da Guarnição de Nampula para reunirem em
plenário, no cinema militar, pelas 18 horas de hoje, dia 2 de Julho de 1974,
com a seguinte agenda de trabalhos:
a.
Eleição da Comissão Regional de Nampula.
b.
Discussão e votação da moção referida em 1.e.»
- Esta fase da nossa intervenção vai
levar-nos a uma conquista definitiva, correspondente aos nossos anseios, não
sendo por isso tempo de desistência ou fraquezas. Algum dia a revolução iria
chegar aqui… - O João falava com calma, mas com muita firmeza.
Nós sentíamos que estava a chegar a
altura de fazermos o que devíamos fazer.